segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Ora, qual o homem que consegue fugir da sua sina?
Eu, por exemplo, nunca consegui.
Sou fadado à dor, ao sofrimento, à solidão, mesmo tendo nascido sem essa vocação.
Mesmo em meio à multidões, obrigações, amigos, diversões, na correria do trânsito, das aulas, das burocracias, em meio a canções, vinhos e afins eu estou sempre. Sempre só.
Solidão nem tanto, as vezes tarda. A dor sempre me acompanha, me garante sua eterna companhia e abrigo, me roendo por dentro.
Sofrer talvez não seja de todo ruim. Quando, assim como eu, acostuma-se com a sua presença, torna-se até agradável.
A certeza de ter dor o suficiente para preencher meu vazio me tranquiliza e me faz pensar, que eu seria se não sofresse?
Me faz não ter resposta, mas saber que não preciso de uma, a questão me basta.
A dor me faz como sou, mais vivo e menos só.
Muitos sofrem pelo carro que foi roubado, pelo dinheiro que perdeu, pelas contas que não pode pagar, pelo amor que se acabou, pelo time que perdeu, pelo irmão que partiu sem volta, pelo pai que já morreu...
Eu sofro por sofrer.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Que dia é hoje?
Não faz diferença
O tempo continua passando
E eu continuo
passado

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Ontem eu faltei compromisso comigo, coisas do tempo, da cabeça...

Tenho pensado muito sobre o tempo e sobre essa eterna corrida entre o tempo e os humanos, quem é mais veloz?
Quando mais precisamos dele, ele nos deixa comendo poeira. Resolvi deixar hoje dois poemas sobre o tempo que escrevi há muito tempo e apesar do tempo, ainda é tempo.

"O tempo pára. Numa canção, numa fotografia.
Seja paixão, poesia. Tudo se liga e paralisa

Peguemos o tempo e jogue numa caixinha.
Deixemos pra lá essa idéia boba de horas e tudo mais.
Esqueça o mundo, tire férias de si, suplico

Vamos deixar o tempo esperar
Aprisionado em caixas velhas e vazias
Cheias de mofo

E escapar, se abandonar
tomar tragos da mais profunda solidão
e fazer orgias com fantasmasgozar na cara do vento
e depois chorar e fingir culpa

Quem vai saber? O que vão fazer?

O tempo pára e a gente não tem tempo pra perceber.
Prefere viver num teatro sem fantasia

Eles não querem esquecer o mundo
Não têm tempo para férias

"O tempo não pára e a gente ainda passa correndo"
Talvez o tempo não pare porque eles sempre passam correndo

Pra mim
Ele parou"

"Tempo que passa, não volta mais
não é tempo perdido
Saudosismo imensurável
Tempos senismerecem o cuidado necessário
se abandonados num asilo
aí sim, são esquecidos
vira tempo perdido
uma cova negra em nossas vidas
pessoas sepultadas no tempo
perdas que não voltam atrás
que com o tempo que passa
desfilam despercebidos pela
estação"

...

"Obras de arte são de uma solidão infinita, e nada pode passar tão longe de alcançá-las quanto a crítica. Apenas o amor pode compreendê-las, conservá-las e ser justo em relação a elas" - Rilke

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Hoje eu esqueci que era quarta-feira, para alimentar esse costume, posts às quartas, duas eu escrevo e uma trago um texto que me interesso. Abaixo um poema do mineiro (terra fértil essa) Affonso Romano Sant'Anna, publicado em 1980 no auge da ditadura, continua atualíssimo.

A implosão da mentira

Fragmento 1

Mentiram-me.Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem.Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.

Fragmento 2

Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.

Mentem. Mentem caricatural-
mente.
Mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho transparente.
Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente. Mentem
ardente/mente como um doente
em seus instantes de febre.Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre.E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.
E assim cada qual
mente industrial?mente,
mente partidária?mente,
mente incivil?mente,
mente tropical?mente,
mente incontinente?mente,
mente hereditária?mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava/mente
constroem um país
de mentira
—diária/mente.

Fragmento 3

Mentem no passado. E no presente
passam a mentira a limpo. E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o sol girar
em torno à terra medieval/mente.
Por isto, desta vez, não é Galileu
quem mente.
mas o tribunal que o julga
herege/mente.
Mentem como se Colombo partindo
do Ocidente para o Oriente
pudesse descobrir de mentira
um continente.

Mentem desde Cabral, em calmaria,
viajando pelo avesso, iludindo a corrente
em curso, transformando a história do país
num acidente de percurso.

Fragmento 4

Tanta mentira assim industriada
me faz partir para o deserto
penitente/mente, ou me exilar
com Mozart musical/mente em harpas
e oboés, como um solista vegetal
que absorve a vida indiferente.

Penso nos animais que nunca mentem.
mesmo se têm um caçador à sua frente.
Penso nos pássaros
cuja verdade do canto nos toca
matinalmente.
Penso nas flores
cuja verdade das cores escorre no mel
silvestremente.

Penso no sol que morre diariamente
jorrando luz, embora
tenha a noite pela frente.

Fragmento 5

Página branca onde escrevo. Único espaço
de verdade que me resta. Onde transcrevo
o arroubo, a esperança, e onde tarde
ou cedo deposito meu espanto e medo.
Para tanta mentira só mesmo um poema
explosivo-conotativo
onde o advérbio e o adjetivo não mentem
ao substantivo
e a rima rebenta a frase
numa explosão da verdade.

E a mentira repulsiva
se não explode pra fora
pra dentro explode
implosiva.